sábado, 3 de abril de 2010

A BOA LÍNGUA

A BOA LÍNGUA

Claude Piron

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A respeito da boa língua eu conversarei com você, se você permitir. "Boa em que sentido?", você perguntará, consciente dos muitos significados desta palavra. "De todas as maneiras", responderei. Justamente isso me agrada nesta língua, que em tantos aspectos ela me parece boa. Boa no sentido gostosa, por exemplo. Eu colho dela um prazer, comparável ao prazer que dá um bom prato ou um vinho aromático. Boa como uma boa música: agradável aos ouvidos, melodiosa, que traz alegria pela simples harmonia de seus sons.

Boa, como uma boa brincadeira: certeira eu a acho, capaz de tocar com beleza e objetividade. Boa, como um bom acontecimento.

Você anelou ter um livro esgotado, e eis que por acaso num sebo você o encontra. Imperfeito: um tanto manchado, com uma ou duas páginas um pouquinho rasgadas. Mas ele custa pouco, e você o adquire como um tesouro. Igualmente, a língua Esperanto podemos sentir como um tesouro: imperfeita, certamente, mas isso é bom; se perfeita, ela pareceria menos humana. O importante é que ela satisfaz, porque responde a um anelo. Muitos a sentem como uma boa descoberta.

Moralmente boa, também, porque ela tem consideração pelos pequeninos, por aqueles que não pertencem a culturas de prestígio ou a classe social privilegiada. É digno de atenção, como pessoas de altas posições reciprocamente se desentendem, usando mal línguas que elas mal dominam, ou como elas mal se comunicam através de tradutores, apesar dos longos estudos, do poder, da disponibilidade de dinheiro. Enquanto entre nós esperantistas, homens dos mais comuns, sem dinheiro, sem diplomas, compreendem-se como na própria língua. Sim, moralmente boa, porque ela se mostra mais justa do que qualquer outro método de comunicação entre culturas.

Psicologicamente
boa. Ela é como um modelo de saúde psíquica. A maioria das línguas não são nem tão consequentes nem tão libertárias. Mas nossa boa língua traz em si coerência até o mais alto grau, e nos dá maior liberdade de escolha, na maneira de nos expressar, do que qualquer outro instrumento de comunicação. Muito rigorosa ela é, e exige disciplina (apenas consideremos para compreender isso o -n do acusativo), mas dentro deste rigor, quanta liberdade ela nos propicia! Em que língua é possível a gosto escolher entre "mi vin dankas", "mi dankas vin" e "mi dankas al vi"?(1) Entre "li ludas gitaron kun fervoro" ou "li fervore gitaras"?(2) Precisamente o rigoroso sentido das terminações liberta o coração e a mente, estimula fecundamente a criatividade. Por isso a espontaneidade encontra nela possibilidade de pleno desenvolvimento, sem semelhança em outra língua.

Quem sabe com tanta beleza associar rigor com liberdade, pensamento com sentimento, é invejavelmente são do ponto de vista psicológico.

Boa, no sentido de benfazeja. Que socorre, como um bom amigo. Quantos problemas ela auxilia a resolver para quem viaja! Quanta alegria ela traz, fazendo vibrar corações num só ritmo, criando essas ocasiões em que nós interculturalmente nos reencontramos, apenas para "amikumi" segundo a bela, profundamente humana expressão de Roger Bernard! Como nos sentimos bem, tagarelando através dela! Intensa gratidão eu sinto, quando penso neste aspecto de suas qualidades: ela estimula bons sentimentos, o que faz a vida mais rica. Ela irradia coisas boas. (...)

A respeito dessa boa língua – em diversos sentidos da palavra – eu gostaria de compartilhar com vocês os frutos de minhas meditações.
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1. Maneiras diferentes de agradecer a alguém em Esperanto.
2. Ele toca violão com fervor.
Fragmento da parte introdutória de "La Bona Lingvo", de Claude Piron; Editora "Pro
Esperanto" de Viena em parceria com "Hungara Esperanto Asocio" de Budapest.
Tradução: Neusa Priscotin Mendes
APERP - Associação Pró-Esperanto de Ribeirão Preto

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